O cientista de dados da IBM, Raoni Lazaro Rocha Barbosa, de 34 anos, entrou numa trama kafkiana, típica do Brasil. No último dia 17, às 6 horas da manhã, ele estava dormindo em sua casa no bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro, quando a polícia chegou para levá-lo. Barbosa saiu de pijama e foi imediatamente algemado, sem ser informado sobre os motivos da prisão. Em seguida foi levado para a Penitenciária de Benfica, onde ficou por cerca de 20 dias até ser libertado na última quinta-feira (9), e soube que estava sendo acusado, em um inquérito iniciado pela Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (Dracoem 2019, de participar de uma milícia privada e ameaçar e extorquir moradores da cidade de Duque de Caxias, a 40 Km de sua residência. Soube-se também que o procedimento foi baseado no reconhecimento de Barbosa em uma foto mal feita e desfocada em que aparece outro homem negro chamado Raony, com “y”, conhecido como Gago. Mas nunca houve uma identificação pessoal e uma comparação das imagens dos dois indivíduos. “Não existe previsão legal de reconhecimento por foto, mas virou praxe no meio policial”, diz a advogada Carolina Altoé, que defende Barbosa e entrou com um habeas corpus para libertá-lo. “A prisão de inocentes parece uma epidemia”. Carolina anexou provas documentais de que ele tinha emprego fixo, residia em Campo Grande e nunca morou em Duque de Caxias.

Na quarta-feira, 8, a policia admitiu o erro na prisão de Barbosa, e ele foi solto no dia seguinte. O reconhecimento equivocado de pessoas tem sido, historicamente, uma das principais causas de falhas judiciais no País. Estima-se que uma em cada quatro prisões injustas esteja associada a esse problema. Para tentar pelo menos minimizá-lo, o Conselho Nacional de Justiça (CNJbaixou um portaria no dia 31 de agosto que cria um grupo de trabalho para estudar o assunto e definir uma proposta de regulamentação de diretrizes e procedimentos de reconhecimento pessoal que possa ser aplicada pelo Judiciário e evite a prisão de inocentes. A coordenação do grupo ficará a cargo do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJRogério Schietti Cruz, que julgou um caso desse tipo há alguns meses libertando o réu e entende que o valor probatório do reconhecimento envolve uma considerável grau de subjetivismo e potencializa falhas e distorções. “Há uma sensação geral e inequívoca de que muitos erros são cometidos diariamente e que muitos inocentes estão indo para a cadeia”, afirma o advogado Hugo Leonardo, presidente do Instituto do Direito de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). “Falamos de um gargalo judicial e precisamos, de uma vez por todas, estabelecer premissas para evitar falsos reconhecimentos.”
O artigo 226 do Código de Processo Penal estabelece os métodos de reconhecimento pessoal, mas ele é ignorado. A polícia não tem metodologia e nem técnica para fazer uma identificação correta. E uma das consequências desse desleixo é que os negros acabam sendo sobrerrepresentados em acusações infundadas. De um modo geral, há um componente racista nesse processo investigatório, já que as pessoas negras e jovens são as mais abordadas pela polícia. Em 83% dos casos de erro, os indivíduos desse grupo étnico são culpabilizados injustamente. Em crimes patrimoniais e no tráfico, a prova fotográfica, segundo Carolina Altoé, é usada sem que haja nenhuma previsão legal para isso e com freqüência é a única prova de acusação. “Os erros que aparecem são apenas uma pequena parte dos que acontecem, que envolvem pessoas anônimas e pobres”, diz o sociólogo Ignacio Cano, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJe membro do Laboratório de Análise da Violência. “Há evidências de que as falhas de identificação prejudicam principalmente as minorias.”

Hugo Leonardo, presidente do IDDD (Crédito:Karime Xavier)
Um relatório recém-divulgado pela Comissão Criminal do Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais revela que só no ano passado houve 58 erros em reconhecimentos fotográficos no Rio de Janeiro. Mas o número está certamente subestimado. Em outros estados brasileiros a situação não é muito diferente. Formado em sistema de informação pela PUC-Rio e com especialização no Instituto de Tecnologia de Massachussetts, nos Estados Unidos, Barbosa faz, atualmente, dois cursos de pós-graduação e é empregado da IBM. Isso explica porque seu caso veio à tona. Mas quem não conta com bons advogados pode passar meses ou anos na prisão, mesmo sendo inocente. É um problema terrível — capaz de transformar a vida de uma pessoa honesta em uma tragédia — e que precisa ser resolvido.